Em meados de novembro de 2017, fui convidado, por um dos meus melhores amigos para fazer parte de uma static. Nosso objetivo era apenas um: conseguir passar pela luta mais desafiadora já formulada em um MMO até hoje: Ultimate Coil of Bahamut, um encontro de aproximadamente 20 minutos que não só iria destruir minha vontade de jogar Final Fantasy XIV, como também deixar de herança cicatrizes tanto físicas quanto psicológicas e possivelmente arruinar a minha, já terrível, reputação na comunidade end-game do jogo. Uma decisão tomada de forma eufórica que viria a me morder diretamente em minha nádega esquerda depois de um ano.
Mas, qual é a dessa luta?
Bem, Ultimate Coil of Bahamut foi uma luta criada para saciar a comunidade de end-game hardcore: vinte minutos excruciantes em que oito pessoas precisam, executar, perfeitamente, mecânicas, enquanto puxam sua job ao limite para conseguir finalizar o encontro. Enquanto algumas das suas fases durante a luta não exigem um DPS alto, o que permite alguns erros durante o percurso e a recuperação do grupo, a maioria das mecânicas dos dois terços finais da luta ocasiona ou leva a party a um wipe, seja pelo uso de habilidades que matam instantaneamente todos do grupo ou pelo efeito “bola de neve”, em que a recuperação se torna impossível. De maneira geral, uma luta imperdoável em todos os aspectos, sendo que o tempo mínimo médio gasto pelas statics é de aproximadamente 100 horas dentro do encontro. UCoB foi considerada tão difícil pela comunidade que a sua próxima iteração dentro do jogo (Ultima Weapon Ultimate) teve o tempo de luta drasticamente reduzido e o tempo médio de aprendizado para a clear é de cerca de 40 horas, ou seja, 60% mais curto do que sua predecessora.
Senta que lá vem história
Como eu mencionei antes, eu estava eufórico: havia sido convidado para participar de um grupo da “elite” do end-game, para alguém que, antes, tinha sido jogado de static a static, procurando um lugar para chamar de casa dentro do jogo, essa oportunidade era única e massageou meu ego em todos os lugares certos. Havia, entretanto, um porém: Eu precisaria me adaptar e aprender a jogar de Scholar já que essa era a posição da vaga. Juntei minha coragem e comecei a estudar a job. Porém minha teimosia em aprender sozinho viria mais tarde a me assombrar. Meu primeiro desafio era juntar o equipamento necessário para a luta e, em aproximadamente duas semanas, reaprendi Deltascape V3.0 e V4.0 savage. Naquele momento, depois de terminar V4.0, eu estava confiante, já que conseguimos passar com uma certa tranquilidade e achei que já havia aprendido o suficiente sobre minha job. Hahaha. Hoje, isso me soa absurdamente inocente da minha parte.
Começamos aos poucos. Na primeira parte da luta, eu teria que me adaptar e me comunicar com meu parceiro de heal para maximizar o meu dano no boss (Twintania), enquanto aprendia posicionamentos durante o encontro. A primeira barreira estava erguida: como fazer minha rotação de dano sem que isso afetasse o meu parceiro de heal. Foi então que cometi meu primeiro erro: busquei na minha lista de amigos os healers que conhecia e comecei a trocar informações sobre o que fazer em determinadas mecânicas. O problema foi o seguinte, se vocês me compreendem: UCoB é uma luta única em todos os aspectos e, dos scholars que conhecia, somente um havia tentado o encontro. Porém, ele não mora no Brasil, não sendo tão afetado pela latência, um dos grandes problemas do endgame para nós, brasileiros. Caí como um rato em uma ratoeira, e durante meses teimei em uma rotação tão precisa, tão dependente de uma latência baixa, que raramente consegui fazer ela funcionar, perdendo assim muito DPS, comprometendo o grupo por semanas. Principalmente durante o resto do encontro.
Mr. Yoshida, I don’t feel so well…
Seis meses se passaram, e com, aproximadamente, 3 horas diárias de um intensivo dentro de uma luta, com pouco a nenhum progresso, o que começou a afetar mal o grupo. O “burnout” estava começando a aparecer em alguns membros e com o inverno chegando meu corpo começava a ser fisicamente afetado também. Sofro de um problema crônico de coluna devido a um acidente de trânsito sofrido há algumas décadas: um lesão lombar que ocasionou uma hérnia de disco, em que meus nervos do uréter e do músculo do peito são “pinçados”, causando um desconforto enorme que rendeu inúmeras idas a um neurologista e sessões de fisioterapia para que eu conseguisse viver de forma “confortável”. Proponho um pequeno exercício aos leitores: com um objeto esférico (uma maçã serve) aplique uma pequena pressão no corpo do seu osso esterno (o osso que une as costelas no centro do seu peito) e a mantenha por alguns minutos. É essa a sensação que tenho durante grande parte do inverno, quando, em minha cidade, as temperaturas chegam a beirar zero graus célsius. Em conjunto a tudo isso outro membro da static que sofre de uma doença crônica degenerativa também estava em apuros. Perdemos semanas e mais semanas, e também perdemos qualquer momentum que havíamos construído durante uma das fases mais aleatórias e importantes da luta.
Demorei para perceber que estávamos diariamente andando em círculos e, para piorar a situação, comecei a apresentar sintomas mais graves durante os meses que se seguiram: sessões de dor em que mal conseguia respirar quando me deitava para dormir e falta de sensibilidade na mão esquerda, chegando ao ponto em que precisei fazer alguns exames neurológicos, todos inconclusivos, e ao tentar novos remédios fui infligido a mudanças bruscas de humor. Na minha idiótica mente, eu seria “fraco” se admitisse para o líder da minha static que não tinha condições de continuar com a nossa carga horária, uma teimosia estúpida que custaria definitivamente parte da sensibilidade de alguns dos meus nervos do centro da minha mão.
Foi durante nossa pausa para progressão no patch 4.4 (Alphascape) que os primeiros sinais de que as coisas não terminariam bem começaram a aflorar. Em uma sequência interminável de problemas pessoais, seguidos de problemas relacionados a equipamentos (em que vários membros precisaram adquirir equipamentos novos para seus computadores) e o que era inadmissível, para alguns membros, ocorreu: demoramos quase dois meses para conseguir passar o encontro final do tier. Na minha cabeça, ensinado pelas minhas tentativas frustradas anteriores a essa static, conseguir terminar o tier já poderia ser considerado uma vitória. Foi então que nosso líder convocou uma reunião de emergência, se eu não melhorasse meu desempenho, eu estaria fora do grupo.
Durante a reunião, na qual fui defendido por alguns membros (não sei se por compaixão ou por que acreditaram que eu poderia melhorar), foi decidido que começariamos uma planilha para anotar o desempenho dos membros, tentando ser o mais objetivos que conseguíssemos, e, assim, forçar, ao máximo nossa escala para conseguirmos ganhar alguma progressão. O burnout no ar era quase palpável porém topamos novamente o desafio.
Com a indicação do meu parceiro de heal e ajuda do meu líder de raid, consegui contato de alguns dos melhores healers da comunidade de endgame e, em sessões no dummy, em que repetia mentalmente as fases que já tínhamos feito na luta, eu puxei ao máximo o meu desempenho, tentando jogar no mais alto nível possível. Meus erros diminuíram drasticamente e a tabela mostrava que, com a minha evolução, eu havia finalmente me tornado um bom scholar. Era para mim uma espécie de história de redenção. Eu finalmente me sentia à vontade na minha job, porém, como não estamos em um anime shonen, onde o poder da amizade consegue tudo, logo o fantasma do burnout começou a me perseguir. Durante os três meses seguintes eu dei 120% do que conseguia, tentando estar física e mentalmente sadio nos horários de raid. Pensando com mais calma agora, eu podia ter diminuído meu entusiasmo um pouco, já que algumas das minhas piadas durante nossas trys podem ter soado como descaso para outras pessoas, especialmente para quem via nossas streams de fora do espaço do grupo. Meu corpo, já começava a reclamar para mim com sessões de dor mais frequentes. Logo começaram a me afetar tanto na vida profissional, como na vida social. Além de afetar obviamente meu desempenho dentro do jogo. Foi então que atingimos a segunda grande barreira: Um dos membros iria sair do grupo. A razão? Ele não sentia que conseguiriamos terminar a luta dentro do prazo estipulado.
Mindset, mindset, mindset
Se me perguntarem, hoje, o que eu acho mais importante em uma atividade end-game de qualquer MMO, minha resposta será simples: Mindset. Essa é uma das palavras mais utilizadas dentro da comunidade e significa que todos no grupo têm que ter o mesmo objetivo para que a convivência não se torne problemática. Esse talvez tenha sido um dos maiores problemas do meu grupo em particular. A falta de rigidez durante nossos meses iniciais, principalmente na fase de aprendizado de quem trocou de job, criaram rachaduras na fundação do nosso gameplay. Essas, jamais seriam completamente preenchidas. Não digo que você precise ser rude ou mal-educado dentro do seu grupo, mas o mínimo de cobrança é que todos foquem o máximo no mesmo objetivo e que busquem dentro da comunidade, especialmente entre os jogadores mais experientes, meios para melhorar tanto na sua job quanto na execução de mecânicas das lutas pretendidas. Comunicação é extremamente importante para que todos os membros estejam voltados para um objetivo em comum.
No nosso caso, o momentum para continuar UCoB foi quebrado e não conseguimos nos recuperar. Mesmo com um novo membro extremamente competente, tanto na progressão, quanto no domínio da sua job, já era tarde demais. O burnout que havia atingido a um outro jogador há meses, atingiu seu limite e sua saída quebrou de forma permanente o grupo.
Postmortem
Não ter atingido nosso objetivo, mesmo depois de um ano de árduas tentativas, não só é incrivelmente frustrante, como triste. Minha sensação inicial foi de ter sido jogado embaixo de um ônibus: a falta de re-clears do conteúdo do patch 4.4 deixa uma marca negra nos meus “FF logs”, uma das ferramentas mais usadas (e infladas, porém isso é tópico para outro texto) pela comunidade para medir o desempenho dos jogadores. Isto também significa que minhas chances de conseguir um grupo bom para a próxima expansão são praticamente nulas. Se eu quiser continuar como jogador de endgame, eu provavelmente precisarei de um convite de alguém que ainda acredita em mim ou de um eventual reroll para outra job, entretanto, dessa vez em um papel diferente de healer. Não me entendam mal, não pretendo fingir que nada disso foi culpa minha ou criar empatia para o meu fracasso. Para mim, 99% da culpa é minha. Tanto minha teimosia quanto meu ego inflado que se recusou a pedir ajuda no início, cavaram a minha própria tumba. Olhando para trás, como um veterano em conteúdo endgame de MMOs, eu deveria ter sido muito mais proativo junto ao meu líder e, talvez, até ter admitido que esse desafio era (fisicamente) um pouco demais para mim.
Conclusões de uma mente (nada) brilhante…
Se alguém chegar em mim hoje e me perguntasse: “você faria tudo denovo”? Bem, lembra da tal da teimosia? A resposta está na ponta da língua: sem exitar. Amei cada segundo, até mesmo os mais frustrantes que passei com esses oito bastardos maravilhosos que me acompanharam nessa jornada maluca. Do meu tank mal-humorado ao meu parceiro de healer que jogava de dentro de um helicóptero; do velho parceiro com a cabeça chapada de remédio ao amigo de profissão que tocava áudios do Tinder sem querer; do meu inocente garoto de jesus que não sabia o que era yaoi (não google isso) ao meu neet favorito que conhecia todos os cantos obscuros do mundo do japão; do meu parceiro de reclamações de pets que fazem o que querem; e especialmente do meu líder que dizia que não era líder, uma amizade que espero que seja para a vida. Cada um de vocês vai fazer uma imensa falta no meu dia-a-dia. Podem, até dizer, que é só um jogo, mas, para mim, todas as nossas experiências são insubstituíveis e muito mais “reais” do que o “IRL”.
“Sucesso é ir de fracasso a fracasso sem perda de entusiasmo”. – Winston Churchill
Hugo Takigushi – Amante de FFXIV, Ex-healer e Host do Tanoyan Podcast
Caraio, parecia que eu tava lendo a light novel de Long Horizon. Muito foda, na moral msm.
adorei o texto, me vi em alguma destas situações, parabéns!!!
Que texto, da pra sentir a quantidade de emoção que tudo isso lhe proporcionou, estou iniciando minha jornada em Eorzea agora e espero um dia chegar nesse nível.