FFXIV | As memórias submersas – o dilema do Guerreiro da Luz

We are such stuff
As dreams are made on, and our little life
Is rounded with a sleep.

 

As largas ruas circundadas por grandes prédios pintam um cenário quase que chapado de um cinza melancólico. Ao fundo, você irá ouvir uma melodia que é acompanhada por um tique-toque. Este ecoa pelas ruas vazias da cidade feita de memórias[1]. Esta é a última cidade a qual você é introduzido pelas missões principais de Shadowbringers, a nova expansão de Final Fantasy XIV.

Embora a cidade nos deixe intrigado por ter um conceito similar à Rapture de Bioshock, ela é apenas um adendo. Sua magnitude e, ao mesmo tempo, seu vazio são representações de quem Emet-Selch é. Eu poderia me estender por longos parágrafos e dispor de diferentes adjetivos para tratar sobre a expansão de modo geral. As missões principais vão te levar por uma jornada, em que você se sente em uma história épica,  grande o suficiente para ser contada por gerações entre os pequenos lalafels.

A jornada do Guerreiro da Luz é ofuscada pela profundida e humanidade da história de Emet-Selch.

A expansão de Shadowbringers foi anunciada prometendo colocar o jogador na pele do Guerreiro da Escuridão. Até então, conhecido como Guerreiro da Luz, seu personagem esteve envolvido com missões focadas em defender os injustiçados e os desamparados. Você se juntou aos Scions e, desde o começo, tenta evitar os planos malignos dos Ascians. Você lutou por Hydaelyn, representada como um grande cristal de luz, contra Zodiark, o grande cristal de escuridão.

O mundo de Final Fantasy XIV se apresentava de maneira simples e direta aos jogadores, uma vez que as linhas morais de seus personagens estavam bem definidas. O bem luta contra o mal. O herói salva os indefesos dos tenebrosos inimigos. A dicotomia só era reforçada cada vez mais pelos pequenos elementos, como as cores de suas roupas, como enfrentar os Ascians em algumas dungeons.

Contudo, a narrativa te traiu. Desde o começo, você teve a impressão de que entendia como o mundo funcionava. Acreditava estar à frente de seu inimigo e compreender suas ações, assim como suas motivações. Só não percebemos, meu caro, que havíamos sido cobertos pelos véus da narrativa, dos enunciados ideológicos que, no fim, impedia-nos de apreender a verdade. Nesta nova expansão, as dicotomias se esvaem como as formas em nuvens que encaramos, por alguns segundos, em um céu azulado. Ao piscar os olhos, todo o sentido imposto sobre a forma-disforme da nuvem se perde e o mundo simples se torna complexo.

Na última área do jogo, você se encontra em Amaurot. Referência ao livro de Thomas More, Utopia, a cidade é a projeção das memórias de Emet de seu mundo. Este estava a ponto de ser destruído e foi na esperança de mudar as regras da própria existência que os Ascians encontraram uma esperança. A vontade de fazer com que o mundo sobrevivesse fundamentou a existência de Zodiark.

Este ser, um primal, manifestação dos desejos de um povo, era nosso principal inimigo. Com a história de Emet descobrimos que Zodiark não apenas salvou o mundo (e, consequentemente, proporcionou a possibilidade de nós estarmos lá, vivos), mas que a sua volta é necessária para o retorno dos entes queridos dos Ascians, sacrificados na primeira invocação. Nós temos a chance de conhece-los um pouco. Na cidade utópica, apenas os vultos das memórias caminham e suspiram suas últimas frases.

As longas ruas de Amaurot servem de repouso para as memórias dos mortos.

As cenas vistas ali são representações dos últimos momentos daqueles que um dia existiram, baseadas nas lembranças de Emet. Sua humanidade, então, desenha-se para nós. Raiva. Tristeza. Desejo. Estes sentimentos permearam suas ações e delinearam o caminho percorrido por ele. Do império Garlean à calamidade no The First, em meio a todas as batalhas até então sem sentido, Emet manipulou e arquitetou os acontecimentos na busca de acabar com a dor da falta causada pelos que já não estão com ele.

Ao perceber ser o único sobrevivente entre os estudantes revolucionário, Marius, em Os Miseráveis, pede desculpas por ter ficado, enquanto todos tinham ido. Emet talvez teria adicionado uma ou duas frases a esta fala do jovem revolucionário.

Emet age visando nada além de justiça. Zodiark precisa ser invocado novamente para poder trazer de volta aqueles que agora só existem como lembrança. Emet te testa, pois estabelece o Guerreiro da Luz como o exemplo da vida no The Source e, assim, busca julgar se as suas ações o convencem de que você e seus companheiros são merecedores de estarem vivos.

Quem merece viver.

Qual o preço para que estejamos vivos.

A história nos coloca em um ponto em que precisamos encarar a verdade por trás de tudo: a simples existência de todos nós repousa no sacrífico de outros, assim como a impossibilidade destes de voltarem a viver

O peso da morte e do vazio do coração de Emet, representado por sua cidade em baixo d’água, cai sobre você, jogador. Este, porém, é o segundo momento em que o jogo te trai. Ele te dá a oportunidade de conhecer Emet, de sentir sua dor, mas não há nada que possa fazer. Não há como confortá-lo. Você não poderá decidir por si mesmo, já que nenhuma caixa de diálogo se abre, oferecendo uma rota em que a solidão de Emet será confortada.

Mesmo assim, a pergunta fica no ar “e se…”, pois não há uma determinação superior sobre quem tem o direito de decidir sobre a capacidade de manter ou não a vida de alguém/algo. Os Scions são categóricos sobre a vontade de proteger seu mundo, mesmo sabendo do que há por trás. Em um pequeno ato de bravura, nós nos encontramos ao lado dos ascians, inimigos declarados. Personificação do mal. Mal? Maldosos por desejarem ter, de volta, as pessoas amadas? Maldosos  por sentirem dor de perder alguém?

Por sentir saudade?

A expansão traz o desejo de deslocar a ideia de um universo mágico em que a luta se baseia no bem versus o mal. Cada ser do mundo tem seus desejos, suas alegrias e suas tristezas, o que os torna mais próximos de nós. Nosso heroísmo passa a ser tendencioso e as atitudes dos inimigos perdem a  configuração de uma maldade cega.

As palavras de Emet-Selch abrem um caminho antes inacessível. Nele, as diferenças e as justificativas, antes tão claras, esvaecem-se perante nossos olhos. Lembro que, no conhecido livro “Eu sou a lenda”, a premissa é a mesma: quem é o monstro é apenas uma questão de perspectiva. Nós não somos ascians, mas, pela primeira vez, a história que vivemos até agora ganha uma coloração diferente ao entender melhor as motivações de pelo menos um deles.

Shadowbringer concluí o primeiro arco de sua história deixando uma responsabilidade nas mãos do Guerreiro da Luz. Ao lembrar do preço pago para que tanto você quanto outros pudessem existir, o fardo da vida e do sofrimento de vários, haverá um exame moral. O que faço, faço por achar certo? Independentemente dos contras envolvidos, é isto que escolho?

Caso você se esqueça dos que se sacrificaram, Amaurot sempre estará lá, no fundo do mar, com seus prédios. Suas luzes melancólicas reluzem no fundo do mar, servindo como os resquícios de nada além de uma memória.

 

[1] Agradecimento à Yu que, após ler a primeira versão, apontou esse detalhe da trilha sonora.


Paulo Kawanishi – tem uma opinião sobre tudo e acredito que praticamente todas estão certas. Mestre do Critical Points.

Twitter: https://twitter.com/alucarti
Critical Points: http://criticalpoints.com.br

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